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Soberania divina e responsabilidade humana

O objetivo do presente estudo é refletir sobre a natureza do trabalho evangelístico do cristão, à luz da pressuposição amplamente aceita, de que Deus é soberano na salvação. Agora, temos que reconhecer logo de início que esta tarefa não é nada fácil. Os temas tratados pela teologia costumam conter armadilhas aos desavisados, pois a verdade de Deus nunca é exatamente como o homem espera que seja e nosso presente assunto é mais perigoso do que a maioria. Isto porque, ao lidar com ele, temos que estar prontos para lidar com um antonôrnio na revelação bíblica, e, em ocasiões como esta, nossas mentes finitas e decaídas tendem, mais do que frequentemente, se perder.

O que é um antinômio? O Shorter Oxford Dictionary (Pequeno Dicionário Oxford) a define-a como "uma contradição entre conclusões que parecem igualmente lógicas, razoáveis ou necessárias".' Para nossos propósitos, entretanto, esta definição não é muito precisa; a definição deveria começar falando em "uma contradição aparente". Pois a questão toda de um antinômio - em qualquer caso no campo da teologia - é que não se trata de uma contradição real, embora assim pareça. Trata-se, antes, de uma aparente incompatibilidade entre duas verdades evidentes. Um antinômio existe quando dois princípios, postos lado a lado, aparentemente são irreconciliáveis, ainda que ambos sejam inegáveis. Há razões irrefutáveis para se crer tanto numa quanto na outra; ambas repousam sobre claras e sólidas evidências, mas você considera totalmente misterioso como é que elas podem ser conciliadas uma com a outra.

Você consegue até reconhecer que cada uma deve ser verdadeira se tomada isoladamente, mas não consegue ver como é que as duas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Acontece que a evidência está aí, de modo que nenhuma das duas perspectivas pode ser descartada em favor da outra. Contudo, nem tão pouco é possível reduzir uma à outra ou explicar uma em função da outra; as duas posições aparentemente incompatíveis devem ser igualmente sustentadas e ambas devem ser tratadas como verdade. Sem dúvida uma exigência dessa confunde profundamente a nossa mente sistemática, mas não há nada a se fazer se quisermos ser fiéis aos fatos.

Um antinômio não é nem dispensável, nem compreensível. Não se trata de uma figura de linguagem, e sim, de uma relação observada entre duas declarações objetivas. Trata-se de algo que os próprios fatos nos impõe. É inevitável e insolúvel.

O que, então, se deve fazer com um antinômio? É preciso aceitá-lo como ele é, e aprender a conviver com ele. Portanto, é preciso ter o cuidado de não fazê-las disputarem entre si, nem tirar quaisquer conclusões, a partir de qualquer uma delas, que confrontem diretamente um princípio ao outro (pois esse tipo de dedução certamente não é nada razoável).

O antinômio que nos interessa particularmente aqui é a aparente oposição entre a soberania divina e a responsabilidade humana, ou (colocando-o de forma mais bíblica) entre o que Deus faz como Rei e o que ele faz como Juiz. As Escrituras nos ensinam que, como Rei, ele ordena e controla todas as coisas, inclusive todas as ações humanas, segundo o seu propósito eternos. As  Escrituras ensinam ainda que, na condição de juiz, ele considera todo ser humano responsável pelas escolhas que faz e as formas de procedimento a que segue. Assim, os ouvintes do evangelho são responsáveis por suas reações e se acaso rejeitarem as boas novas, tornar-se-ão culpados de incredulidade "O que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus."Por outro lado, Paulo, a quem foi confiado o evangelho, é responsável por pregá-lo e se ele negligenciar sua comissão, será punido por infidelidade "... pois sobre mim pesa essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho!".

A soberania de Deus e a responsabilidade humana nos são ensinadas como se fossem coisas que andam lado a lado, numa e na mesma Bíblia, aparecendo muitas vezes até na mesma passagem. As duas coisas nos são garantidas, portanto, pela mesma autoridade divina; ambas são, portanto, verdadeiras. Segue-se daí que elas devem ser mantidas lado a lado, ao invés de jogadas uma contra a outra. O homem é um agente moral responsável, ainda que seja, ao mesmo tempo também, controlado pela divindade. O homem é divinamente controla-do, embora seja também, um agente moral responsável. A soberania de Deus é uma realidade, e a responsabilidade do homem é igualmente uma realidade. Eis aí o antinômio que nos foi revelado, em cujos termos devemos fazer nossa reflexão acerca da evangelização.

É claro que para as nossas mentes finitas, isso tudo é inexplicável. Soa-nos como uma contradição e a nossa primeira reação é de nos queixar de que isso tudo é um absurdo. Paulo registra esta queixa em Romanos 9: "Tu, porém, me dirás: De que se queixa ele (Deus) ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade?" (Rm 9.19). Se, como nosso Senhor, Deus ordena todas as nossas ações, como é que pode ser razoável ou justo para ele atuar igualmente como o nosso Juiz, condenando nossas falhas? Observe como Paulo responde. Ele não tenta demonstrar o quanto a atuação de Deus é apropriada; ao invés disso, ele censura o espírito por trás desta questão. "Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?".

O que o queixoso precisa aprender é que ele, uma criatura e um pecador, não tem direito algum de apontar para qualquer falta nos caminhos revelados de Deus. As criaturas não estão credenciadas para registrar queixas contra o seu Criador. Como Paulo prossegue dizendo, a soberania de Deus é plenamente justa, pois o seu direito de dispor de suas criaturas é absluto. Um pouco antes, nesta mesma epístola, ele demonstrou que o julgamento de Deus contra os pecadores também é totalmente justo, já que os nossos pecados merecem amplamente sua condenação. Cabe a nós, diz ele, reconhecer estes fatos e adorar a justiça de Deus, tanto como Rei quanto como Juiz; não especular sobre como a sua justa soberania pode ser consistente com o seu justo julgamento, e certamente não por em dúvida a justiça de qualquer dos lados da questão, só porque achamos que o dilema de suas relações mútuas é demais para nossas cabeças! Nossas especulações não são a medida do nosso Deus.

O Criador nos disse que ele, ao mesmo tempo, é um Senhor soberano e um Juiz justo, e isso deveria ser suficiente para nós. Por que é que hesitamos tanto em aceitar a sua palavra? Será que não somos capazes de confiar no que ele diz? Não temos razão nenhuma para ficar surpresos ao encontrar mistérios deste tipo na Palavra de Deus. Pois o Criador é incompreensível para as suas criaturas. Um Deus que nós pudéssemos entender de forma exaustiva e cuja revelação de si mesmo não nos confrontasse com algum tipo de mistério, seria um Deus à imagem e semelhança do homem e, por isso mesmo, seria um Deus imaginário, mas de modo algum o Deus da Bíblia. Pois o que o Deus da Bíblia diz é o seguinte: "Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR" (Is 55.8s.). O antinômio com que nos deparamos aqui é apenas um dentre muitos que a Bíblia contêm. Podemos ter certeza de que todos eles acabam encontrando a sua reconciliação na mente e conselho de Deus, e podemos ter certeza de que nós mesmos os entenderemos no céu. Mas, enquanto isso, precisamos ser sábios para manter com igual ênfase as duas verdades aparentemente conflitantes neste caso, mantendo-as lado a lado na relação em que a própria Bíblia as coloca e reconhecer que estamos diante de um mistério que não devemos esperar ser capazes de solucionar nesta vida.

Falar assim é fácil, mas não é nada fácil praticá-lo. Pois nós detestamos ter antinômios como estes rondando nossas cabeças. Preferimos muito mais embrulhar tudo em pacotes intelectuais bem amarrados, tendo aparentemente dissipado todos os mistérios e expurgados todos os pensamentos que pairavam soltos no ar. Portanto, encontramo-nos constantemente tentados a nos livrar dos antinômios em nossas mentes por meios ilegítimos, suprimindo ou rejeitando uma verdade, supostamente em favor da outra, e por causa de uma teologia mais organizada. É o que acontece neste caso. O perigo que corremos é de descartar e mutilar uma verdade, pelo modo como enfatizamos a outra, de defender de tal modo a responsabilidade do homem, que acabamos ignorando a soberania de Deus, ou então, de afirmar tanto a soberania de Deus que acabamos destruindo a responsabilidade do homem. Ambos os equívocos devem ser evitados.

Vale a pena, portanto, refletirmos um pouco mais sobre o modo pelo qual perigos como estes podem surgir no contexto específico da evangelização. Existe, antes de mais nada, o perigo da preocupação exclusiva com não resposabilidade humana. Como vimos anteriormente, a responsabilidade humana é um fato e um fato bastante sério. A responsabilidade do homem em relação a seu Criador, na verdade, é o fato mais essencial da sua vida, mas que por outro lado também não se pode levar a sério demais. Deus nos criou como agentes morais responsáveis e ele jamais nos tratará como se fôssemos inferiores a isso. A sua Palavra dirige-se a cada um de nós individualmente e cada um é responsável pela maneira como responde - por sua atenção ou falta de atenção, por sua fé ou incredulidade, por sua obediência ou desobediência. Ninguém poderá jamais se esquivar da responsabilidade devida à sua reação em relação à revelação de Deus. Afinal, vivemos sob a sua lei.

Teremos que responder a ele por nossas vidas.

O homem sem Cristo é um pecador culpado, que deve responder diante de Deus pelo fato de ter quebrado a sua lei. Eis porque ele precisa do evangelho. Quando ele ouve falar do evangelho, passa a ser responsável pela decisão que toma quanto ao assunto. Isso o coloca diante da opção pela vida ou pela morte, a mais relevante decisão com a qual um homem jamais poderia se deparar.

Quando apresentamos o evangelho a um homem não convertido, é muito provável que, sem compreender plenamente o que está fazendo, ele tentará fechar os próprios olhos para a seriedade desse assunto, e por isso justificar se por fazer pouco caso de tudo isso. É preciso que nessas horas usemos de todos os meios lícitos a nosso alcance para fazê-lo dar-se conta da seriedade da decisão que está enfrentando, e pressioná-lo a não se permitir tratar um assunto tão sério de forma irresponsável.

Quando pregamos sobre as promessas e convites do evangelho, e oferecemos Cristo a homens e mulheres pecaminosos, é parte da nossa tarefa de enfatizar e reforçar o fato de que eles são responsáveis diante de Deus pelo modo como respondem às boas novas da sua graça. Nenhum pregador jamais poderá frisar este ponto demasiadamente. Nós mesmos temos responsabilidade semelhante de tornar o evangelho conhecido. O mandamento de Cristo a seus discípulos: "Ide, portanto, fazei discípulos ..." (Mt 28.19), foi transmitido a eles em sua capacidade representativa; esta é a grande comissão de Cristo, não apenas para os seus apóstolos mas para toda a Igreja. Evangelizar é nada mais do que uma responsabilidade inalienável de toda comunidade cristã e de cada cristão.

Todos nós estamos sob a obrigação de nos dedicarmos à divulgação das boas novas, e de usarmos toda a nossa criatividade e espírito empreendedor para divulgar esta nova por todo o mundo. Todo cristão deve, portanto, estar constantemente sondando a sua consciência, perguntando a si mesmo se está fazendo tudo o que poderia ser feito neste campo. Pois esta também é uma responsabilidade que não pode ser desprezada.

É preciso, portanto, que a noção da responsabilidade humana seja levada extremamente a sério, uma vez que ela afeta tanto o pregador quanto o ouvinte do evangelho. Mas não devemos permitir que isso nos faça descartar a noção da soberania divina de nossas cabeças. Ao mesmo tempo em que é preciso lembrar sempre que proclamar a salvação é responsabilidade nossa, não podemos jamais esquecer que é Deus quem salva. É Deus quem conduz homens e mulheres sob o som do evangelho, e é Deus quem os conduz à fé em Cristo. O nosso trabalho evangelístico é o instrumento que ele usa para este fim, mas não está no instrumento o poder que conduz à salvação.

O poder está nas mãos daquele que usa o instrumento. Não devemos jamais, em nenhum momento, esquecer disso. Pois, se esquecermos que é prerrogativa de Deus prover resultados, quando o evangelho é pregado, começamos a pensar que é responsabilidade nossa garanti-los. E, se esquecermos que somente Deus pode dar a fé, acabaremos pensando que, em última instância, a conversão das pessoas não depende de Deus, mas de nós mesmos, e que o fator decisivo para tanto é a forma como nós evangelizamos. E esta linha de raciocínio, se levada consistentemente as últimas conseqüências, acabará nos levando para bem longe do caminho.

Analisemos esse ponto com mais extensão em outra oportunidade.
Postado em: 30/01/2013 às 09:57

Por: CAPS I - REVIVER

Fonte: Da redaзгo

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